domingo, 6 de dezembro de 2009

Porta

Acordei. Nada fazia sentido. Corredor largo. Chão, teto, paredes. Pedra. Polida. Primitiva. Fria. Senti-me naqueles sonhos de correr parado. Angustiante. Não era sonho. O cheiro dizia isso.

Fraco. Sutil. Presente. Cheiro de tia velha. De terra molhada pela chuva. Essência da morte no entardecer outonal. Perceptível. Desconcertante.

Dadas às opções, segui adiante. Ou retornei. Não havia referencial...

Caminhei. Horas? Dias? Minutos? O cheiro intensificou-se. Cheguei a um salão. Grandioso. Fúnebre. Transbordante de portas. Paredes. Teto. Chão. A rocha quase imperceptível.

Abriria alguma? Não o fiz. Perdi-me na apatia cinza e marrom. Cacei o cheiro como um sabujo. Acolhedor. Encontrei a fonte. Acariciou minhas narinas. Minha vida guiada por sensações primitivas.

Encostei a palma da mão na porta. Madeira antiga. Fria. Áspera. Sólida. A guardiã do desconhecido. Sem maçaneta. Bastava empurrar. Travei.

Na hesitação, o cheiro aumentou. Vagou ao meu redor. Buscou-me.

Seria a porta errada? Fazia diferença? Inspirei. Lento. Profundo. O cheiro nos músculos. Retumbou ao sabor do coração. Inclinei-me robótico. Fechei os olhos. Não respirei.

A porta deslizou no batente. Em uníssono todas abriram. O cheiro sumira. E agora?


quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Série Tarot - 19 - Mercador de Pecados

Avistei Eva estendida no chão. “Ela morrerá! Atropelada!” Alguém gritou. As palavras me flecharam. Me despertaram. “Não!” Gritei. Corri e segurei-lhe a mão. A respiração chiava como balão esvaziando. O sangue quente encharcou-me a calça. Apertei-lhe a mão com força.

Não sei quanto tempo fiquei ali. Os paramédicos me retiraram. Permaneci parado na calçada. Ela morreria. Nada poderia ser feito.

“Sempre se pode fazer algo.” A voz vinha de trás a minha esquerda. Calma e confiante. Masculina, mas suave.

Virei-me. Estava contra o Sol. Enxergava apenas o terno cinza. O resto apenas corpo. Uma sombra material.

“Sempre se pode fazer algo.” Repetiu. “Basta querer. O quanto você quer?” A voz de algodão deslizava em meus ouvidos. Me sedava. Sorri. “Muito. Quero muito.”

“Pode ser feito. Mas tem um preço. Tudo tem um preço.”

“Eu pago. Não importa o que for.”

O Homem de Terno Cinza estendeu-me a mão. Retribuí. Estava atordoado e não o vi ir embora. Eu estava em paz. Fui para casa.

Visitei Eva no hospital à tarde. Situação estável. Sobreviveria. Mas seu pai sofrera um grave acidente na fábrica. Morte instantânea.

Minha culpa? Bobagem. Acontece. Nenhum Homem de Terno Cinza tem poderes sobre a vida e a morte. Sacudi a cabeça. Eva sobreviveria. Saí do hospital. Na saída fui abordado.

“Cuidado.” Disse um homem de chapéu havana. Um dos pés apoiado na parede. Terno branco de risca cinza. Um anel de prata em cada indicador. O chapéu cobria-lhe o rosto e ele olhava para baixo.

“Cuidado.” Repetiu. Tremi ao ouvi-lo. Timbre grave. Sentia a voz em meus pulmões. Perfurava meu corpo.

“No intimo, você sabe. Todos sempre sabem. A culpa é sua. A escolha é somente sua. Ele voltará. A escolha continuará a ser sua.”

O Homem de Chapéu Havana virou-se. Foi embora. Quem era ele para colocar-me a culpa? Se ele não houvesse saído tão rápido... Por sorte não o vi mais.

Eva se recuperou. Começamos a namorar. Tudo era perfeito. Até Safo aparecer. Maldito grego. Mais bonito. Mais inteligente.

Eva e eu brigamos. Agora, ela só andava com Safo. Uma noite, o Homem de Terno Cinza reapareceu. Estava em um beco escuro. Eu enxergava metade de uma perna apenas. O resto era um refúgio de sombras.

“A quer de volta?” A voz de algodão inconfundível. Balancei a cabeça em acordo. “Há um preço, você sabe.” Estendi-lhe a mão. Ele retribuiu.

Reconquistei Eva. Ouvi que Safo retornara à Grécia. Algum problema na família. Não ficamos sabendo o quê.

O Homem de Terno Cinza retornou outras vezes. Quando perdi meu emprego. Na promoção na empresa. Nas duas gravidezes indesejadas de Eva. Nas faltas de dinheiro.

Um dia ele retornou diferente. Não havia problemas a resolver. Dirigia um carro. Abriu a porta traseira. Entrei. O retrovisor posicionado para eu não enxergar-lhe o rosto. Meu estômago apertou. Lembrei do Homem de Chapéu Havana.

“Você sabe,” começou o Homem de Terno Cinza, “haveria um preço. Chegou a hora de pagar.”

Como um flash, vi o pai de Eva deformado pela prensa industrial. O cheiro do aço fundido misturado à carne queimada. Enxerguei a falência da família de Safo. Ele pedindo dinheiro nas ruas. Sua beleza sugada pelo Sol. Reconheci meu chefe ser demitido por erros de cálculo. Tornar-se alcoólatra. Minha readmissão. Vi meus três concorrentes de promoção adoecer. Hepatite. Depressão. Câncer e Suicídio. Enxerguei o espírito de Eva morrer um pouco ao abortar. A tristeza aumentar dia-a-dia. Minhas escolhas.

Estacionou. Dois homens escoltaram-me a uma sala escura. Sentei. Na mesa, a minha frente, um contrato e uma caneta-tinteiro.

O Homem de Terno Cinza parou na porta. A luz branca vinda da outra sala deixava-o em sombras. Negro. Apenas o terno distinguível. As mãos nos bolsos. Me olhou.

“Você tem uma dívida comigo. Sabe disso. Mas eu não lhe obrigarei a nada. Sabe disso. Espero que cumpra sua palavra.”

O Homem de Terno Cinza virou-se de costas. A luz branca inundou a sala. Os passos dele sumiram.

Fiquei só. A única luz vinha pela porta aberta. O contrato me olhava pousado na mesa. Suas letras flutuavam ao sabor da minha culpa.

Poderia não assinar e sair. Não havia ninguém fora da sala para me impedir. Balance-me na cadeira. Olhei para a porta. Olhei o contrato. Balancei.

 ***

O dia amanheceu com céu azul. O Sol brilhava forte. Saí de casa com um novo vigor. No indicador, um anel de ouro refletia a luz do Sol.



Agradecimentos inspiracionais: Lissandra, Luiza e Mauriccio

domingo, 24 de agosto de 2008

Queda

Olhos fechados.
Deslizei as mãos no beiral da ponte. Fuligem. Poeira. Áspero. Gritos mecânicos às minhas costas fluíam em ondas revoltas. Ergui as pernas.
Impulso. Sentei no beiral. O vento contrário martelou-me o corpo. Tentou preservar-me. O fluxo atrás de mim cessou. Ainda vibrava em meu peito. Inclinei-me. A ponte, minha cadeira de balanço.
Fui. Voltei. Fui. A vibração parou. Hesitei. Esperei. O vento amigo repetiu-se. A vibração às costas não parou. Explodiu nervosa. Maior. "Quem me olharia?"
Abri os olhos.
O sol refletido na água cegou-me. A pressão às costas combatia o vento. "Algum carro sorriria ao me ver?"
O vento acariciou minhas mãos. Subiu até meu rosto. Beijou-me. Morreu.
A pressão mecânica venceu.

domingo, 17 de agosto de 2008

Esmaecer

Um Poema para mudar o Ritmo. Um pouco de melodia e lirismo ao Conto seco.


Bufão é como me conhecem
Mas é apenas um papel
Neste mundo já sem céu
De ser o que se parece

Quem dentre vós se atreve
A sair de vossas cascas?
Tropeçar no baile de máscaras?
A ser o que não se mede?

Morto está o mundo, mas não o sabe
Ignorando vem eles à caça
Do prêmio mais fecundo

Corações de bufões em taça
Revestidos em papel timbrado
Bufões, à deriva no aguado

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Mini-Conto: Roleta Russa

"Estar perto não é ser presente, é estar no interior." A última frase de Jéssica. O sorriso de pôr-do-sol dela contrastava com a sala escura. Ela aquietou-se em meus braços. Enlacei-a. Agi.
Matei-a. Prova de amor. A única solução para nossos problemas. Morrer para viver. Tinha poucos minutos. Depositei seu corpo na incubadora. A pele negra no metal cinza. O computador escaneou a mente de Jéssica. Copiou-a.
Decifra-me ou devoro-te. Pensava ao esperar. A máquina decifraria as sutilezas de Jéssica? O monitor acendeu. O rosto de minha mulher na tela. Linhas e quadrados. Incolor. Abriu a boca.
"Por que dois e dois são quatro?" Blasé total. Caí de joelhos. Chorei.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Mini-Conto: Bolhas de Sabão

“Olha o carrinho que ganhei!”
“É... legal...”
“E cê? O que ganhou?”
“Eu? Ganhei nada não.”
“Nem uma boneca? De pano e retalho?”
“Não, nem...”
“Cê ta chateada, né?”
“Não... é, não estou não...”
“Mas tá tão quieta. Só pode ta triste.”
“Já disse, não estou.”
“ Então vamos brincar. Te empresto meu carrinho.”
“Acho que vou ficar aqui...”
“Aqui?! Mas não tem nada aqui! Só o velho chafariz.”
“Pois é...”
“Acorda! Nem funciona mais essa tranqueira.”
“Eu sei...”
“Ainda quer ficar aqui? Você tá doente?”
“Pode ser... não tenho certeza...”
“Cê olha o chafariz sem água e não quer brincar... Tá doente sim. Mas não tá quente... Tá, qual é a graça?”
“O chafariz...”
“Já disse! Ele tá quebrado!”
“E eu que já sei...”
“Diz logo vai, o que cê tanto olha?”
“As bolhas de sabão do chafariz...”

Atraso

Não houve conto neste sábado por pequenos problemas.
Por isso nada melhor do que um feriado para colocar a postagem em dia.
Abraços a todos.