quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Série Tarot - 19 - Mercador de Pecados

Avistei Eva estendida no chão. “Ela morrerá! Atropelada!” Alguém gritou. As palavras me flecharam. Me despertaram. “Não!” Gritei. Corri e segurei-lhe a mão. A respiração chiava como balão esvaziando. O sangue quente encharcou-me a calça. Apertei-lhe a mão com força.

Não sei quanto tempo fiquei ali. Os paramédicos me retiraram. Permaneci parado na calçada. Ela morreria. Nada poderia ser feito.

“Sempre se pode fazer algo.” A voz vinha de trás a minha esquerda. Calma e confiante. Masculina, mas suave.

Virei-me. Estava contra o Sol. Enxergava apenas o terno cinza. O resto apenas corpo. Uma sombra material.

“Sempre se pode fazer algo.” Repetiu. “Basta querer. O quanto você quer?” A voz de algodão deslizava em meus ouvidos. Me sedava. Sorri. “Muito. Quero muito.”

“Pode ser feito. Mas tem um preço. Tudo tem um preço.”

“Eu pago. Não importa o que for.”

O Homem de Terno Cinza estendeu-me a mão. Retribuí. Estava atordoado e não o vi ir embora. Eu estava em paz. Fui para casa.

Visitei Eva no hospital à tarde. Situação estável. Sobreviveria. Mas seu pai sofrera um grave acidente na fábrica. Morte instantânea.

Minha culpa? Bobagem. Acontece. Nenhum Homem de Terno Cinza tem poderes sobre a vida e a morte. Sacudi a cabeça. Eva sobreviveria. Saí do hospital. Na saída fui abordado.

“Cuidado.” Disse um homem de chapéu havana. Um dos pés apoiado na parede. Terno branco de risca cinza. Um anel de prata em cada indicador. O chapéu cobria-lhe o rosto e ele olhava para baixo.

“Cuidado.” Repetiu. Tremi ao ouvi-lo. Timbre grave. Sentia a voz em meus pulmões. Perfurava meu corpo.

“No intimo, você sabe. Todos sempre sabem. A culpa é sua. A escolha é somente sua. Ele voltará. A escolha continuará a ser sua.”

O Homem de Chapéu Havana virou-se. Foi embora. Quem era ele para colocar-me a culpa? Se ele não houvesse saído tão rápido... Por sorte não o vi mais.

Eva se recuperou. Começamos a namorar. Tudo era perfeito. Até Safo aparecer. Maldito grego. Mais bonito. Mais inteligente.

Eva e eu brigamos. Agora, ela só andava com Safo. Uma noite, o Homem de Terno Cinza reapareceu. Estava em um beco escuro. Eu enxergava metade de uma perna apenas. O resto era um refúgio de sombras.

“A quer de volta?” A voz de algodão inconfundível. Balancei a cabeça em acordo. “Há um preço, você sabe.” Estendi-lhe a mão. Ele retribuiu.

Reconquistei Eva. Ouvi que Safo retornara à Grécia. Algum problema na família. Não ficamos sabendo o quê.

O Homem de Terno Cinza retornou outras vezes. Quando perdi meu emprego. Na promoção na empresa. Nas duas gravidezes indesejadas de Eva. Nas faltas de dinheiro.

Um dia ele retornou diferente. Não havia problemas a resolver. Dirigia um carro. Abriu a porta traseira. Entrei. O retrovisor posicionado para eu não enxergar-lhe o rosto. Meu estômago apertou. Lembrei do Homem de Chapéu Havana.

“Você sabe,” começou o Homem de Terno Cinza, “haveria um preço. Chegou a hora de pagar.”

Como um flash, vi o pai de Eva deformado pela prensa industrial. O cheiro do aço fundido misturado à carne queimada. Enxerguei a falência da família de Safo. Ele pedindo dinheiro nas ruas. Sua beleza sugada pelo Sol. Reconheci meu chefe ser demitido por erros de cálculo. Tornar-se alcoólatra. Minha readmissão. Vi meus três concorrentes de promoção adoecer. Hepatite. Depressão. Câncer e Suicídio. Enxerguei o espírito de Eva morrer um pouco ao abortar. A tristeza aumentar dia-a-dia. Minhas escolhas.

Estacionou. Dois homens escoltaram-me a uma sala escura. Sentei. Na mesa, a minha frente, um contrato e uma caneta-tinteiro.

O Homem de Terno Cinza parou na porta. A luz branca vinda da outra sala deixava-o em sombras. Negro. Apenas o terno distinguível. As mãos nos bolsos. Me olhou.

“Você tem uma dívida comigo. Sabe disso. Mas eu não lhe obrigarei a nada. Sabe disso. Espero que cumpra sua palavra.”

O Homem de Terno Cinza virou-se de costas. A luz branca inundou a sala. Os passos dele sumiram.

Fiquei só. A única luz vinha pela porta aberta. O contrato me olhava pousado na mesa. Suas letras flutuavam ao sabor da minha culpa.

Poderia não assinar e sair. Não havia ninguém fora da sala para me impedir. Balance-me na cadeira. Olhei para a porta. Olhei o contrato. Balancei.

 ***

O dia amanheceu com céu azul. O Sol brilhava forte. Saí de casa com um novo vigor. No indicador, um anel de ouro refletia a luz do Sol.



Agradecimentos inspiracionais: Lissandra, Luiza e Mauriccio

3 comentários:

Anônimo disse...

algum inimigo meu deve ser parceirasso desse cara de cinza, pois soh me ferro.. :)

Tiarles Rodeghiero disse...

Tu tá fudido hein meu!hahauahuahauah

Me pego a pensar quem seria o cara de cinza... O próprio Diabo, onipresente ou um anjo?
A culpa é sempre de Satan... Sabe-se lá qual é o código de ética celestial...

Muito bom BIN!
Abraço!

Gato de Jade disse...

Esse foi com certeza o melhor conto q li neste blog :o
AMEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEIIIIIII
:O
Esse me prendeu e me fez pensar *_*
E as pessoas.. só pensam em sí mesmas, no seu bem estar..